quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Artigo de Sérgio Pachá - ALMA DE UM POETA


Sergio Pachá*


Padre Fernando Bastos de Ávila faz um lúcido e lírico balanço de sua trajetória
Eis um livro digno de alinhar-se entre as grandes autobiografias de nossas
letras – que são poucas. Testemunho de uma vida, lúcido e lírico balanço de
uma existência de escol, seu texto se impõe e fascina por mais uma razão.
Primeiro que tudo, pela implacável sinceridade do relato, tanto mais surpreendente
quanto menos compatível com a reputação de cavilosa e chicaneira
que, antes mesmo de Blaise Pascal e suas Provinciais, já aderia ao nome e à
pele da Companhia de Jesus. Longe, bem longe de tudo isso está o jesuíta que
nestas páginas se confessa.


Rompendo com a sovada tradição da literatura de pios encômios à vida
religiosa, que tem muito mais a ver com o proselitismo fantasioso dos caçadores
de recrutas do que com a nua realidade daquilo que um poeta nosso
chamava “a vida apenas, sem mistificação”, Bastos de Ávila narra os altos e
baixos de sua história, sem nada suprimir ou atenuar: a infância feliz; a vocação,
subliminarmente inoculada pela mãe e, discreta, mas inequivocamente,
caucionada pelo mestre de noviços, mentor de uma suposta “eleição” do adolescente
(eleição esta que, na verdade, era um “jogo de cartas marcadas”, dado
que “a hipótese do recuo dava vertigens, como o caminhar para a condenação
eterna, e era afastada como um pensamento quase obsceno”); o doloroso e
estóico assentimento de seu pai; os anos de formação em Nova Friburgo e na
Europa do segundo pós-guerra; o retorno ao Brasil, para o início de uma carreira de professor e conferencista, primeiro na Escola de Sociologia e Política da PUC-RJ, por ele fundada, e, anos mais tarde, no recém-criado Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (Ibrades).


Uma das surpresas que estas páginas reservam a quantos cresceram embalados
pelo mantra da excelência da formação jesuítica será a crítica serena e
severa que lhe move o autor. Graves são as reflexões que faz sobre seus anos
de filosofia, em Nova Friburgo, “numa espécie de campo de concentração
intelectual, no qual não penetravam os agentes provocadores do pensamento
filosófico contemporâneo”. Ainda mais graves, talvez, as que dedica aos eivados
princípios determinantes do modo de relacionamento dos religiosos entre
si: “O individualismo que marcava nossa formação ascética, a prevenção contra
os riscos de qualquer amizade humana – hoje se falaria em riscos de
homossexualismo – [...] reduziam nossa caridade fraterna à observância de
certas convenções e formalismos. [...] Com uma certa malícia, poder-se-ia
aplicar a nós o dito de Péguy: parce qu’ils n’aiment personne, ils croient aimer
Dieu (como não amam ninguém, pensam que amam a Deus).”
Conseqüência direta de tais princípios é o que se lê num par de entradas
do diário do autor. A primeira diz respeito à sua admissão como membro
honorário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: “Vieram muitos
convidados, nenhum da Companhia de Jesus ou, mais exatamente, veio um
[...] designado pelo Cardeal [...] para representá-lo. [...] Depois houve uma
recepção no terraço, tudo pago por Alberto Venancio Filho. A Societas Jesu,
Societas Amoris (Companhia de Jesus, Companhia do Amor) não gastou
nada comigo e não deu a menor importância a ter um membro no IHGB.” A
segunda, mais curta, é ainda mais incisiva: “Curioso: os leigos amam; nós
somos caridosos.” Já agora nada haverá que surpreenda neste comentário:
“Renunciei inocentemente a tudo e creio hoje que a renúncia inocente é uma
contingência da condição humana. Ninguém faria opção alguma, se pudesse
prever a seqüela de sacrifícios inerentes a qualquer opção.”
E que dizer destas palavras verdadeiramente admiráveis, que parecem
ecoar o “Profundamente” de Bandeira e a “Chanson d’Automne” de Verlaine?
“Noite de São João. Ainda ouço os sons de uma remota festinha junina,
onde talvez um amor esteja nascendo furtivamente. No alto do céu vejo um


balãozinho perdido na noite. Eu sou como ele: uma chama interior me fez
subir. Hoje me sinto surpreendido pela noite e pelo frio externo. Diviso,
embaixo, as rasteiras casas, pequeninas, mas onde pode caber um amor. Sintome
solitário na noite, levado pelo vento, pela luz escassa que não ilumina os
passos de ninguém. E minha chama interior vai se extinguindo até se apagar e
eu de leve pousarei no chão, ou, quem sabe, no grande mar amigo.”


A alma deste padre é a alma de um poeta.

Fonte bibliográfica: Artigo publicado em O Globo, caderno Prosa e Verso, 12 de março de 2005.

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