quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Sérgio Pachá lê, relê e venera o cearense José Albano (1882-1923)


José Albano


Poesia: Soneto Prece
Ensaio, crítica, resenha & comentário:

Fortuna crítica:
Poeta singular, no dizer de Manuel Bandeira, "porque inteiramente fora dos quadros da poesia brasileira", José de Abreu Albano nasceu em Fortaleza no dia 12 de abril de 1882 e estudou no Seminário da cidade entre 1892 e 1893. Mas logo o pai o mandou estudar na Europa, onde requentou os melhores colégios, na Inglaterra (Stonyhurst College), na Áustria (Colégio Stella Matutina) e na França (Colégio dos Irmãos da Doutrina Cristã).

Dessa formação algo "eclesiástica" duas ilações podem ser tomadas: uma, a linhagem de sua poesia mística; a outra, a sua predileção pelo passado, pois achava que a perfeição artística estava lá. Não lia os escritores de seu tempo e a sua obra, de modo geral, é de gosto clássico, arcaizante, camoniana. Assim, fugia ao esquema, algo repetitivo do omantismo/Parnasianismo/Simbolismo, fuga para o passado, pois "propositadamente ele não quis ultrapassar a Renascença", como diz José Sombra.

Bem jovem ainda, José Albano está de volta à terra natal, quando começa a publicar seus poemas no jornal A República e estuda no Liceu do Ceará. Em 1902 vai para o Rio de Janeiro, com a intenção de estudar Direito, mas interrompe o curso e volta ao Ceará, na condição de professor de latim do Liceu. Europa, Ceará e Rio de janeiro marcarão as várias etapas da vida do poeta.
Depois de trabalhar no Ministério das Relações Exteriores, José Albano, já casado, vai para o consulado brasileiro em Londres. Mas abandona a carreira pública para viajar pelo mundo, enquanto continua a produzir seus poemas de feição clássica. Poliglota, escreve em francês, inglês e alemão, mas, como lembra Manuel Bandeira, "tão versado em idiomas estrangeiros, prezava como ninguém a pureza do vernáculo".

Inquieto, "um doido com intervalos de gênio", como disse Gondin da Fonseca, José Albano acaba abalado mentalmente, mas se recupera após três anos de tratamento no Brasil e volta à Europa. Alguns de seus poemas são enfeixados, pelo próprio autor, em "plaquetes requintadas", dificilmente encontráveis hoje em alguma biblioteca.

Deve-se a Manuel Bandeira e a Braga Montenegro o estudo e a divulgação de suas Rimas. Manuel Bandeira, como inúmeros críticos da obra de José Albano, ficou indeciso quanto à classificação estética do poeta, naquele começo do século com escolas que se entrecruzavam e influenciavam lealmente os poetas.

Como o Parnasianismo tinha uma feição algo clássica, tal constatação levou alguns estudiosos a incluírem José Albano nesta Escola. Manuel Bandeira, depois de julgá-lo fora "dos quadros da poesia brasileira", levanta a questão: "Todavia, alguma coisa em sua poesia soa à corrente poética do tempo em que ele viveu. Esse tempo era o simbolismo. Pela espiritualidade de sua inspiração, pela musicalidade de sua forma, pela sensibilidade por assim dizer outonal de seus versos, é dentro do quadro simbolista que melhor cabe a sua singular figura.
José Albano morreu na França, em Montauban, às margens do rio Tarn, no dia 11 de julho de 1923, e foi sepultado no pequeno cemitério da cidade.

José Albano

SonetoPoeta fui e do áspero destinoSenti bem cedo a mão pesada e dura.Conheci mais tristeza que venturaE sempre andei errante e peregrino.Vivi sujeito ao doce desatinoQue tanto engana, mas. tão pouco dura;E ainda choro o rigor da sorte escura,Se nas dores passadas imagino.Porém, como me agora vejo isentoDos sonhos que sonhava noite e dia,E só com saudades me atormento;Entendo que não tive outra alegriaNem nunca outro qualquer contentamentoSenão de ter cantado o que sofria.


José Albano

Prece Bom Jesus, amador das almas puras/Bom Jesus, amador das almas mansas,/De ti vêm as serenas esperanças,De ti vêm as angélicas doçuras. /
Em toda parte vejo que procuras/ O pecador ingrato e não descansas,/Para lhe dar as bem-aventurançasQue os espíritos gozam nas alturas./
A mim, pois, que de mágoa desatino/ E, noite e dia, em lágrimas me banho,/Vem abrandar o meu cruel destino, /
E terminado este degredo estranho,/Tem compaixão de mim, pastor divino,/Que não falte uma ovelha ao teu rebanho!

José Albano ou de novo Camões








Leonardo Gandolfi

José Albano ou de novo Camões
No que se refere à generosidade, os poetas influenciados são menores, ou mais fracos; quanto mais generosidade, e quanto mais mútua ela é, mais medíocres os poetas envolvidos (Bloom, 2002, p.80).

A essa noção de poeta menor – aquele que sempre está sob a imensa sombra de um outro poeta – Harold Bloom contrapõe a do poeta maior, forte ou autêntico. O crítico americano acredita que a boa influência poética se dá por uma leitura distorcida ou desvio do texto primeiro, ação que angustia e provoca o poeta influenciado. É assim que se tem dado a história da literatura: os grandes autores se fazem ao interpretar de forma tendenciosa e criativa seus precursores, imediatos ou não.
É aqui que começamos – na comparação entre Luís de Camões e José Albano, querendo primeiro saber se ambos são poetas maiores ou não. Nossa dúvida porém não tem procedência. A comparação, da maneira que enunciamos, é óbvia. Camões é o maior poeta de língua portuguesa; já José Albano é apenas mais um nome daquele conjunto de poetas, quase sempre inexpressivos, surgido na primeira e segunda década do século XX no Brasil, época fronteiriça de desgaste de estéticas finisseculares como a do simbolismo e do parnasianismo.
Vemos assim que diante de um grande poeta maior, como é o caso, a influência poética não pode ser das mais frutíferas. E não houve poeta que mais tenha sido generoso com Camões (entendendo generosidade na acepção de Bloom) no que diz respeito à forma, ao estilo e ao tema, ou seja, a quase tudo. A proximidade entre os dois poetas é tão surpreendente e perigosa que, se montarmos um soneto embaralhando os quartetos de um e os tercetos do outro, será difícil distingui-los:
O cisne, quando sente ser chegadaA hora que põe termo a sua vida,Música com voz alta e mui sabidaLevanta pela praia inabitada.Deseja ter a vida prolongadaChorando do viver a despedida;Com grande saudade da partida,Celebra o triste fim desta jornada.Assim também, sujeito à dura sorte,Espalho o meu queixume no ambiente,Para que me alivie e me conforte.Sinto a mesma tristeza que a ave sente,Pois amor torna a vida numa morte,Que me tortura e mata lentamente.
Aqui não se podem diferenciar o ritmo, a sintaxe nem o tema. Os quartetos porém são de Camões (1981, p.236); e os tercetos, de Albano (1993, p.66). Grande parte da pequena obra do poeta brasileiro é assim – sua poética, diríamos até, não é apenas de inflexão camoniana como geralmente acontece com muitos, mas parece ser ela a própria voz e estro de Camões. Tendo isso em vista, os críticos, que se deram ao trabalho de incluir o nome de Albano em seus compêndios de história literária brasileira, nunca chegaram a um acordo quanto ao seu lugar (coisa que também aconteceu com outros poetas do mesmo período como Mário Pederneiras ou Raul de Leoni). Nelson Werneck Sodré anotou apenas que o poeta “foi figura singular, inclassificável, que se refugiou num cultismo fora de época” (Sodré, 1976, p.456). Afrânio Coutinho o situou num período que chamou de “Sincretismo e transição”, tempo “em que as heranças simbolista e parnasiana se intercomunicaram através de epígonos ou indefinidos” (Coutinho, 1986-I, p.139). Alceu Amoroso Lima destacou com lucidez a reação de Albano “contra o ambiente nefelibata ou libertário” da época, através de “seu sentimento puramente católico e na sua poética puramente camoniana” (Coutinho, 1986-IV, p.618). Já Darci Damasceno, reconhecendo nele uma figura ímpar, escreveu: “Seu valor como poeta independente é dos maiores de nossa literatura” (Coutinho, 1986-IV, p.607).
É justamente esse poeta sem lugar que nos interessa. Sem lugar, mas ao lado de Camões – fato curioso. O que Albano faz é imitar o poeta português, ou melhor, emulá-lo. Sabemos que a poética da emulação foi comum entre os clássicos e só saiu de voga devido à forte crença romântica do poeta como demiurgo. Vale lembrar que Virgílio emulou Homero, assim como o próprio Camões o fez com Virgílio, Ariosto e Petrarca. Desta forma, através da emulação, José Albano aproxima-se de Camões de forma singular. Chega a ser estranha a leitura de seus versos, pois não vemos ecos do autor de “Os Lusíadas”, mas sim o próprio, repetido em pleno início do século XX tal como, anos mais tarde, brincou o também português E.M.de Melo e Castro com seu Re-Camões, já uma referência ao Supra-Camões de Pessoa.
A poesia de Albano não é entretanto como a dos neoclássicos, que em suas emulações talvez soassem muitas vezes artificiais e excessivos. Como veremos, em seus versos não há o mero desfilar de referências clássicas, há sim o absorver-se do espírito de uma época – o que dá ao seu discurso uma naturalidade que, no entanto e propositalmente, se quer como construída. “Já quis tentar formas novas, / Foi mais ou menos em vão” escreveu o poeta em suas trovas (Albano, 1993, p.106).
Por isso, talvez Albano seja o poeta de uma utopia. Seu posicionamento, suspenso e sem lugar, não é indício necessariamente de alienação ou pedantismo literário, pois, com os olhos de hoje, podemos perceber em sua poesia um quê de resistência. Resistir à literatura de sua época e portanto aos modos de organização da vida moderna no fim do século XIX, mais do que fuga ou refúgio, é uma forma de negação. E dizer não ao seu tempo é especificamente colocar-se enquanto poeta – como afirmou Mallarmé – em greve perante a sociedade e aos seus mecanismos de força (Campos, 1991, p.27). Abordar a poesia de Albano por tal perspectiva possibilita assim rever seu lugar crítico.
NON NOVA, SED NOVE
Jorge Luis Borges explorou muito bem a escrita como indício de um tempo que é cíclico. Mais de uma vez, procurou mostrar o quão não-linear pode ser a história da palavra. Escolhemos assim três textos seus em que é possível ver que o ‘novo’ e o ‘velho’ não se constituem necessariamente como pólos opostos. Primeiro, referimo-nos ao famoso conto em que Borges nos apresenta Pierre Menard, espécie de decadentista francês que passou grande parte de sua vida buscando nada mais que reescrever o Dom Quixote. A estória é tão absurda quanto perspicaz: Menard não quer adaptar ou refazer, mas sim repetir Cervantes tal qual o foi, só que alguns séculos depois. A tarefa é válida, mas irrealizável, porque entre ambos há todo o peso da história passada. As palavras do espanhol no século XV, apesar de idênticas, não são iguais as do francês, este, um homem do fim do XIX. A ideologia muda conforme o espírito de cada época. Assim, os textos, mesmo quando iguais no que diz respeito aos significantes, possuem valor e peso diferentes.
O segundo texto, o ensaio “A esfera de Pascal”, bate na mesma tecla. Aqui Borges discute como uma metáfora, com o passar do tempo, pode assumir diferentes interpretações. Segundo ele, a expressão da “esfera infinita, cujo centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma” (Borges, 2000, p.14), durante a idade média, designou Deus; já Giordano Bruno utilizou tal sentença para ilustrar a concepção do universo segundo Copérnico; por fim, Pascal a empregou para exprimir sua solidão e temor diante da terrível e irremediável concretude das coisas que o circundavam.
Já o terceiro texto chama-se “A flor de Coleridge” e conta que há somente um autor para todos os textos já escritos, autor esse inexistente, que só se realiza através do ato da influência:
Aqueles que copiam minuciosamente um escritor fazem-no de modo impessoal, fazem-no por confundir esse escritor com a literatura, fazem-no por supor que se afastar dele em um ponto é afastar-se da razão e da ortodoxia (Borges, 2000, p.18).
Sem exagero podemos dizer que Pierre Menard ocupa posição semelhante à de José Albano – Cervantes está para o primeiro, assim como Camões, para o segundo. Albano e Menard são poetas que vivem os fins do século XIX desacreditados sobretudo dos valores de seu tempo. Por isso, não à toa, os autores ‘copiados’ são monumentos da literatura renascentista (ou maneirista no caso de Camões segundo Jorge de Sena), momento de apogeu e valorização do homem enquanto sujeito. Esses autores estão presentes para, de certa forma, tentar preencher as lacunas deixadas pelas vicissitudes dos tempos modernos.
Entre Camões e Albano, apesar da proximidade, há uma imensa distância. Quem escreve é o poeta brasileiro: “Já reconheço o vão desejo: / O que procuro mais, menos alcanço; / O que mais imagino, menos vejo” (Albano, p.76). Agora, quem escreve é o português: “Corro após este bem que não se alcança; / No meio do caminho me falece; / Mil vezes caio e perco a confiança” (Camões, p.27). Os sujeitos poéticos estão ali, demasiadamente próximos porém um tanto afastados, devido ao óbvio lugar histórico de Camões e ao consentido anacronismo de Albano. Posicionamento esse do poeta brasileiro que paga tributo ao adágio cristão non nova, sed nove – não o novo, mas de novo (aliás, parte dessa poesia é de um cristianismo que beira o místico).
O autor coloca o enunciado camoniano sob um pano de fundo constituído pelo que aconteceu desde 1580 até 1918, ano da última publicação em vida das “Rimas” de Albano. O tempo assim sujeita a leitura a desvios, novas inflexões e alterações. Tal postura de retaguarda pode sugerir entretanto uma ação tão corrosiva e crítica quanto a das vanguardas que ainda estavam por vir. A prática anacrônica aqui pode questionar a concepção linear de história, acentuada no século XIX, com sua lógica seqüencial que guarda sempre uma relação de causa e efeito. Sua poesia, ao negar o presente, subverte a idéia de avanço e de progresso, e nas entrelinhas nos diz que a literatura não caminha para um lugar ao qual tenha que chegar. Coisa parecida, o italiano Giacomo Leopardi já havia dito, quando escreveu que “tudo se aperfeiçoou de Homero em diante, mas não a poesia” (Bosi, 2000, p.131).
A CONSCIÊNCIA DA CONTRADIÇÃO
A maior dívida de todo autor, por mais imortal que seja ele, é com seu tempo. A obra de arte somente se torna universal se primeiro interpelar a ideologia vigente de sua época. Camões é um português do século XVI, homem católico e de espírito expansionista como não podia deixar de ser. Por isso, ao escrever sua obra, serão esses os valores que, por mais precursor que o autor seja, em princípio o nortearão. Assim, ao repeti-lo, José Albano está lançando mão de um tempo que não o seu. Seu público é o público de um século XX que ainda começava. Recorrer ao autor de “Os Lusíadas” nesse momento configura-se como uma forma de resistência. Por isso, junto de um purismo lingüístico exagerado, como é o caso de “Ode à língua portuguesa”, é possível ver em seus versos um questionamento do presente, um pôr em xeque os valores de sua época e do lirismo vazio de uma poesia de fórmulas esgotadas: “Outros andam o teu sublime aspeto / D’ornamentos estranhos encobrindo / Sem saber o que tens de mais secreto / De mais maravilhoso e de mais lindo” (Albano, p.54). Ao fazer isso, o poeta acaba por expor, através do negativo que é sua obra, a lógica utilitarista do estilo de vida moderno e industrial de sua época. Seus versos são a própria consciência da contradição da arte perante a sociedade, sua poesia anacrônica funciona como espelho invertido da modernidade – é antiquada na dicção e por isso mesma crítica, pois não se integra de forma cômoda nos discursos correntes de seu tempo. De maneira diferente, é ela também o indício de uma crise.
Albano, apropriando-se de Camões, contamina o liberalismo e o cientificismo do fim do XIX com o espírito do XVI, opondo assim a poesia de então – nova porém artificial, carregada de volteios retóricos e excessivos filigranas – ao tom expressamente humanístico de seus versos. Como não poderia deixar de ser, o grande tema da obra camoniana, o “bicho da terra tão pequeno” em toda sua fragilidade foi também tão caro a Albano:
Há no meu peito uma portaA bater continuamente:Dentro a esperança jaz mortaE o coração jaz doente.Em toda parte onde eu andoOuço este ruído infindo:São as tristezas entrandoE as alegrias saindo.
(Albano, p.89)
Tal poética, pelo seu anacronismo, desempenha aquele papel que a melhor poesia moderna desempenhou. Ou seja, ser uma contra-voz que questiona os dispositivos de progresso dos novos tempos. O poeta, através de um discurso que até podemos chamar de reacionário, mas nunca de alienado ou afetado, resiste aos mecanismos de embrutecimento da sociedade moderna, copiando e emulando impunemente como se fosse um homem do XVI. Seu não-lugar poético, como bem diz a etimologia, guarda algum traço de utopia, pois o elogio do anacrônico, no seu caso, não é uma forma de escape, e sim de contestação da lógica do progresso, da superação desmedida e do novo como valor de mercado absoluto no século XX.
EU É UM OUTRO
E através desse movimento cíclico da história, a poesia de Albano acaba sugerindo outra questão inerente à estética moderna. O poeta, repetindo Camões, abre mão de uma voz que seria a sua, ou melhor, apropria-se dela e transforma-a em voz própria que, paradoxal e propositalmente, não é sua. Como se a mesma palavra mudasse de sentido segundo a força que se arroga dela, como certa vez já anotara o francês Compagnon, acerca das possibilidades da citação textual (1996, p.35). Ler de novo Camões, sob um outro nome e numa outra época, é rasurar, de alguma forma, o sujeito poético. Tal concepção de lirismo quebra a habitual expectativa de originalidade – questionando portanto a herança ainda romântica do autor como criador supremo da obra:
Ó musa de Camões, tu que conhecesteO difícil caminho árduo e penoso,De novo o teu poder se manifestePois sem auxílio a voz erguer não ouso.
(Albano, p.116)
O poder dessa musa, deslocada historicamente de seu poeta, subverte a subjetividade lírica, pois dá uma outra inflexão à voz camoniana, inflexão que situa a obra de Albano numa região que se quer como neutra, num espaço aparentemente vazio, não-funcional e esteticista, em que a identidade de quem escreve dá lugar a outro sujeito, testemunha de uma experiência impessoal. Tal impossibilidade é confirmada em “4 sonnets with portuguese prose-translation”. Nestes, Albano não emula Camões e sim Shakespeare. Vemos sua enorme capacidade de assimilação e renúncia – fazer de seus versos sempre os versos de outro: “And when I saw that in this life of ours / Pleasure had no beginning, I did sigh, / For then I knew that sorrow had no end” (Albano, p.84).*
Ainda sobre o acento não romântico dessa poesia, Braga Monteiro afirmou não ser ela dona de “uma inteligência criadora, mas sim de um admirável talento artístico” (Albano, p.235). Numa leitura nossa, tal “inteligência criadora” pode ser entendida a partir daquela concepção de inspiração que vigorava na primeira metade do XIX; já a expressão “talento artístico” deixa ver mais uma tendência que se acentuou no século XX – a do trabalho e técnica, enquanto consciência estruturadora do poema.
DÉCIMO PRIMEIRO CANTO
Entre os poemas de Albano, um em especial chama atenção pelo caráter quase épico de seus versos. “Alegoria” pode até ser visto como o décimo primeiro canto de “Os Lusíadas”, já que, em suas setenta e sete oitavas tipicamente camonianas, presta-se a contar a chegada de Vasco da Gama e suas caravelas noutro porto. Para isso, o poeta lança mão de alguns recursos como a presença de um concílio de deuses que também decide o destino dos heróis. O Brasil é o lugar onde a língua portuguesa – a grande heroína do poeta – continuará sua aventura. Sobre os navegantes portugueses, neste poema, fala a deusa Vênus:
“E agora quero, em prêmio não inglório“Do seu atrevimento mais que humano,“Levá-los longe da estação severa,“À pátria de perpétua primavera (...)
(Albano, p.119)
No poema, a paisagem tropical, por analogia, torna-se uma extensão, um prolongamento da ilha dos amores. Todo prazer e conforto são de novo caracterizados nas terras brasileiras. No entanto, essa “pátria de perpétua primavera” logo é percebida enquanto sonho que é. O poeta assim, feito um pequeno Camões, vê-se em profundo desengano. E é desta forma portanto que, a partir dos poemas, podemos dizer que a língua portuguesa, para Albano, mais que a própria poesia, é uma ilha de resistência.
Depois de tantos pontos em comum com o vate português, é mais do que válido anotar uma pequena divergência que sugere uma importante questão. Boa parte da lírica camoniana utiliza-se de um interlocutor explícito, ou seja, o poeta, algumas vezes, dirige-se diretamente a alguém, com o uso do vocativo “Senhora” ou dos nomes de Dinamene ou Nise. Já nos sonetos de Albano, apesar de toda semelhança, não há um sequer discurso que exija um interlocutor direto. Talvez nisso, possamos ver algum tipo de incomunicabilidade, estranheza ou solidão. Tal indício é importante, já que evidencia a empresa suicida do poeta: repetir como novo um discurso que não faz parte de sua época. Esse procedimento não é novo, mas talvez ainda não havia sido feito com tamanha naturalidade. Os árcades, por exemplo, emularam os antigos, mas devido a uma série de trejeitos, essa poesia, em sua época, não soou anacrônica, já que nela há certos exageros que deixam ver uma artificialidade que sempre caracterizou e marcou muito bem tal discurso, como a representação da vida pastoril ou as citações mitológicas.
Nos versos de Albano, tal artificialidade, pode-se dizer, é menor, porque de fato pensamos que estamos diante de Camões. O efeito de estranheza assim é maior e mais eficaz. A falta de interlocutores diretos mostra um discurso solitário, como poucos o foram – um poeta ilhado a enfrentar o tempo: “Pois nem sei, quando corre o pranto ardente, / Se choro mais os gostos do passado, / Se choro mais as mágoas do presente” (Albano, p.70).
POETA MENOR
Faltam muitos atributos para que sua obra ocupe um lugar de destaque no quadro da poesia brasileira. No entanto nela podem-se ver questões análogas a de poetas de maior vulto e expressão. O primeiro modernismo, por exemplo, é conhecido por seu posicionamento radical e iconoclasta. Ainda assim, Mário de Andrade, em carta ao jovem Drummond, escreve como quem concordava com Albano: “Via em mim influências dos outros, queria tirá-las e ficava sem nada” (Andrade, 1982, p.31). Há ainda Oswald de Andrade – sua atitude antropofágica guarda um quê da apropriação camoniana de Albano. Ambos, o primeiro pela ausência e o segundo pelo excesso, trazem à tona a questão crucial que é a dívida para com a tradição européia. Oswald, pela manifesta liberdade, e Albano, pela total dependência, motivaram a discussão de uma concepção, até então, alternativa de tradição literária que colocasse na berlinda tanto nosso ressentimento quanto nossa insegurança em relação à auto-suficiência cultural brasileira.
Por isso talvez, Manuel Bandeira em 1948, vinte e cinco anos depois da morte de Albano, tenha reunido pela primeira vez, numa edição comentada por ele mesmo, toda a obra do poeta. Talvez somente um leitor como Bandeira tenha tido sensibilidade suficiente para compreender o pequeno e importante papel de um poeta menor como José Albano.* Esta despersonalização é característica em poetas como Rimbaud, Pessoa, Pound, Eliot e muitos outros. Acerca dela, o último escreveu: “A evolução de um artista é um contínuo auto-sacrifício, uma contínua extinção da personalidade”; “(...) o que o poeta tem não é uma ‘personalidade’ a ser expressa, mas um medium particular, que é apenas um medium, e não uma personalidade, no qual impressões e experiências se associam em peculiares e inesperados caminhos” (Eliot, 1989, p.42-45).
Bibliografia:ALBANO, José. Rimas. 3.ed. Rio de Janeiro: Graphia, 1993.ANDRADE, Carlos Drummond de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1982.BLOOM, Harold. A angústia da influência. 2.ed. Rio de Janeiro: Imago, 2002.BORGES, Jorge Luís. Obras completas. São Paulo: Globo, 2000, vol. II.BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 6.ed. São Paulo: Cia das letras, 2000.CAMÕES, Luís de. Redondilhas, canções e sonetos. Rio de Janeiro: RGBL, 1980.CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Mallarmé. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1986, Vol. I e IV.ELIOT, T.S. Ensaios. São Paulo: Art, 1989.SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. 6.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1976.Leonardo Gandolfi, Rio de Janeiro, é mestrando em literatura portuguesa na Universidade Federal Fluminense.

11/03/2005

LEITOR DE JOSÉ ALBANO




Sânzio de Azevedo

José Albano é homenageado


Especial para o Vida & Arte, de O Povo, 27.05.2000

O Rodas de Poesia traz hoje a obra do poeta José Albano. As apresentações acontecem, a partir das 18 horas, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (palco da passarela). O professor Universitário Sânzio Azevedo comenta os trabalhos de Albano.


Ouvi muitas vezes meu pai, o poeta Otacílio de Azevedo, dizer que, ainda muito jovem, tivera a honra de conviver com o autor da Ode à Língua Portuguesa, aí por volta de 1914, no Café Riche, ponto de encontro de intelectuais na Praça do Ferreira de então. E, após falar na majestade do porte daquele homem elegante, de barbas negras e monóculo, confessava ter medo, naquele tempo, de falar diante de poeta tão grande e tão culto, profundo conhecedor da língua portuguesa e outras mais.
José Albano (sabem-no os que conhecem sua obra) versejava à maneira quinhentista em pleno ano de 1912, quando fez publicar, pelas Oficinas de Fidel Giró, Barcelona, três opúsculos, sob a designação geral de Rimas de José Albano, a saber: Redondilhas, Alegoria e Cançam a Camoens e Ode à Língua Portuguesa. Com relação à grafia deste último título, tem-se dito, até com alguma razão, que o poeta buscava reforçar o caráter arcaico de sua dicção. Mas, como aventamos em nossos Aspectos da Literatura Cearense (1982) e, depois, numa resenha na revista Colóquio/Letras de Lisboa, em 1994, o fato de o poeta haver atualizado esses mesmos vocábulos na sua Antologia Poética, editada em Fortaleza por Assis Bezerra, parece indicar haver sido aquele procedimento um recurso para contornar um problema tipográfico: talvez as oficinas de Barcelona, Espanha, não dispusessem de til sobre o ``a'' (daí cançam), e sobre o ``o'' (daí Camoens, que é aliás a grafia espanhola do nome do maior poeta de nosso idioma).
No mesmo ano, pela Tipografia Moderna, de Fortaleza, saíam a Comédia Angélica e os Four Sonnets by José Albano with portuguese prose-translation, cujos versos formavam blocos, mas dentro do esquema de rimas do soneto italiano, com o que o poeta cearense seguia o exemplo de poetas ingleses, como Wordsworth e outros.
José de Abreu Albano que, nascido em Fortaleza em 1882, viria a falecer na França, em 1923, foi educado na Europa (Inglaterra, Áustria e França), tendo depois voltado a Londres e a Paris, entremeando esses períodos com estadas no Ceará e no Rio de Janeiro. Numa dessas estadas em sua terra natal, de 1898 a 1902, fez parte do Centro Literário, datando de 1901 os versos seus mais antigos que fomos encontrar na imprensa cearense, mais precisamente no jornal A República, ora assinando-se José d'Abreu Albano, ora José de Abreu Albano, ou simplesmente J.D'A.A. A maioria dos versos trai formação romântica (``Vi-te, ó virgem - nos lábios teus havia / Sorriso singular''), mas em março desse ano de 1901 já vislumbramos notas precursoras de seu camonismo no quarteto: Aqueles fios d'oiro me têm preso/ O coração em laços poderosos/ Aqueles olhos claros, luminosos/ O peito me têm posto em fogo aceso.
Seus vilancetes, suas cantigas e coplas chegam a rivalizar com o que de mais puro se fez no gênero no Classicismo português. Há no meu peito uma porta/ A bater continuamente /Dentro a esperança jaz morta/ E o coração jaz doente/ Em toda parte onde eu ando/ Ouço este ruído infindo:/São as tristezas entrando/ E as alegrias saindo. Essa tristeza do poeta não nos parece livresca: completamente solitário em sua terra e em seu tempo, razão por que muito viajou, buscando ambiente para sua índole original, era natural que fosse um triste. Ele o confessou no mais famoso de seus sonetos: Poeta fui e do áspero destino/ Senti bem cedo a mão pesada e dura/ Conheci mais tristeza que ventura/ E sempre andei errante e peregrino.
Para Manuel Bandeira (que em 1948 reuniu e prefaciou as Rimas do poeta) este soneto ``nos soa em verdade como um soneto póstumo de Camões''. Era camoniano o poeta, mas preferimos ficar com Braga Montenegro, que afirma que ``assim como Camões imitando Petrarca redigira o soneto camoniano, José Albano, imitando Camões, comporia o soneto à própria maneira''. Mereceu José Albano palavras consagradoras de Antônio Sales, de da Costa e Silva, Américo Facó, Agripino Grieco, Tristão da Cunha, Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima), João Ribeiro, Sílvio Júlio, Manuel Bandeira, Luís Aníbal Falcão, Théo Filho, Braga Montenegro e outros escritores que se debruçaram sobre sua obra poética.
Quando da eclosão do Modernismo, disse alguém ser preferível um mau poema modernista a um bom poema passadista. Hoje é interessante confrontar essa afirmação com esta outra, de Manuel Bandeira, a quem ninguém poderá negar o título de vanguardista: ``José de Abreu Albano foi um altíssimo poeta''. Razão por que consideramos oportuna a apresentação, hoje, a partir das 18h, de uma antologia oral de José Albano nas Rodas de Poesia, coordenadas pelo escritor Carlos Emílio Corrêa Lima, no Dragão do Mar, com o apoio da Secretaria da Cultura do Ceará, que tem à sua frente o jornalista Nilton Almeida.


SÉRGIO PACHÁ, DESDE A JUVENTUDADE, LÊ JOSÉ ALBANO




Sexta-feira, Agosto 26, 2005

SonetoJosé Albano (1882-1923)
Poeta fui e do áspero destino/ Senti bem cedo a mão pesada e dura./ Conheci mais tristeza que ventura/ E sempre andei errante e peregrino. Vivi sujeito ao doce desatino /Que tanto engana, mas tão pouco dura;/ E ainda choro o rigor da sorte escura, /Se nas dores passadas imagino. /Porém, como me agora vejo isento /Dos sonhos que sonhava noite e dia, E só com saudades me atormento; /Entendo que não tive outra alegria /Nem nunca outro qualquer contentamento/ Senão de ter cantado o que sofria.
SonetoJosé Albano (1882-1923) Traduction: Bernard Lorraine Poète, je le fus. Et de l'âpre destin Je resentis très tôt la main pesante et dure, Tristesse fut mon lot, plus qu'heureuse aventure Et j'ai toujours marché comme erre un pèlerin. J'ai donc vécu, à la douce folie enclin, Elle qui trompe tant mais si peu de temps dure. Je ne fais que pleurer ma destinée obscure, La rigueur d'un passé, de douleur en chagrin. Pourtant, comme aujourd'hui je me retrouve exempt Des songes que je nourrissais en permanence, Moi qui n'ai plus que des souvenirs pour tourment, Je comprends mieux le sens de mon unique chance, Car je n'aurai connu qu'un seul contentement: Celui d'avoir chanté ce que fut ma souffrance.
ALBANO, José (1882-1923). Né à Fortaleza, mort à Montalban, nul plus`que José Albano ne vécut dans une tour d'ivoire aussi hermétiquemente fermée. Ce poliglotte exceptionnel, ce puriste exigeant, cet eruditet exclusivement consacré '`a l'art connaissait à la perfection le latin, le grec, écrivait et parlait indifféremment le français, l'anglais, l'allemand, l'italien, l'espagnol, le hollandais, le catalan et le provençal. C'est encore à Manuel Bandeira que nous devons la découverte de ce poète tiré des limbes de l'oublie vingt ans après sa disparition
. (Rimas, 1912)

Sou favorável à unificação dos sistemas ortográficos do Brasil e de Portugal. Mas sou desfavorável a que se façam as coisas pela metade...




JORNAL DO BRASIL, 14 jun. 2008

Por Sergio de Carvalho Pachá
lexicógrafo-chefe da Academia Brasileira de Letras


Sou favorável à unificação dos sistemas ortográficos do Brasil e de Portugal. Mas sou desfavorável a que se façam as coisas pela metade ou a que se mude uma coisa boa em outra pior.

Dou-lhe exemplos de um e outro caso. Uma das mais notórias falhas do sistema ortográfico de 1943, ainda hoje vigente no Brasil, com as modificações nele introduzidas em 1971, diz respeito às regras que governam o uso do hífen. Em matéria de arbitrariedade e incoerência, acredite, elas são verdadeiramente imbatíveis. Assim, sempre que um vocábulo com h inicial é precedido pelos prefixos ante-, anti-, arqui-, auto-, contra-, ex-, extra-, hiper-, infra-, intra-, neo-, pan-, pós-, pré-, pro-, proto-, pseudo-, sem-, semi-, sobre-, sota-, soto-, super-, ultra-, vice e vizo-, o hífen é de rigor: ante-hipófise, anti-herói, arqui-hiperbólico, auto-hipnose, contra-habitual, ex-heroinômano, extra-hospitalar, hiper-hidrose, infra-hióideo, intra-hepático, neo-hipocrático, pan-helênico, pós-hipofisário, pré-hominídeo, pró-homem, proto-história, pseudo-hérnia, semi-hebdomadário, sobre-humano, super-herói, ultra-hipérbole. Se, porém, o prefixo for a- ou sua variante an-, des-, in- e sub- , deve-se eliminar o agá etimológico inicial e adjungir o prefixo à vogal que se lhe segue: teremos, assim, aistórico ao lado de anti-histórico, anepático ao lado de supra-hepático, desumano, inumano e subumano ao lado de extra-humano, pré-humano e sobre-humano. Há alguma lógica nisto? Nenhuma.

Anti-histórico e aistórico

Ora bem: que fazem as novas regras ortográficas prestes a serem impostas aos países de língua portuguesa que aceitaram e promulgaram o tal acordo? Consertam o disparate clamoroso que manda escrever anti-histórico e aistórico, sobre-humano e subumano, supra-hepático e anepático? De modo algum. Fica tudo como dantes, quartel-general em Abrantes.

Por outro lado, a lei 5.765, de 18 de dezembro de 1971, que, em boa hora, suprimiu o acento circunflexo diferencial do e e do o fechado das palavras homógrafas de outras cujo e ou o tônico fossem abertos (escrevia-se, por exemplo, dêle, para ninguém confundir este pronome com a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo delir, dele, e tôda, porque em algum lugar do mundo existe um pássaro fissirrostro chamado toda, com o aberto), teve o bom senso de deixar intocada a regra que prescrevia se assinalasse com acento agudo a sílaba tônica dos vocábulos que tivessem homógrafos átonos.

Por esta razão grafamos pára, do verbo parar, a fim de distingui-lo da preposição para, que é átona; péla, substantivo feminino e terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo pelar, a fim de distingui-lo de pela, que vem a ser a contração da antiga preposição per com a forma arcaica do artigo definido feminino, la, contração esta que é átona.

"Ele pára para ouvir melhor"

Estes acentos são úteis, por distinguirem visualmente realidades auditivas diferentes, ou seja, os vocábulos com tonicidade própria dos vocábulos sem tonicidade alguma (e daí o serem chamados átonos), que se apóiam na palavra que se lhes segue na cadeia sonora da frase, com ela constituindo um único vocábulo fonológico: numa frase como "Ele pára para ouvir melhor" ocorrem apenas quatro acentos, a saber, na primeira sílaba de Ele, na primeira sílaba de pára, na última sílaba de par(a)ouvir e na última de melhor. Esta é uma das regras de acentuação úteis e, portanto, defensáveis, que o novo acordo ortográfico decidiu abolir. Mas, incoerente que é, mantém o acento circunflexo sobre o o do verbo pôr, não vá alguém confundi-lo com a preposição por, que é átona. E durma-se com este barulho.
Poderia dar-lhe outros exemplos de alterações iminentes que reputo danosas à ortoépia, que é a reta pronunciação das palavras do idioma. Mas julgo que os exemplos acima já ilustram suficientemente o que vem por aí. E, se mudar por mudar é frivolidade que nada justifica, mudar para piorar é simplesmente inadmissível.

A unificação desnecessária

Ainda não tive a oportunidade de debruçar-me detidamente sobre cada uma das novas regras, interrogando-me sobre todas as conseqüências a que poderão levar. Um de meus colegas e amigos, contudo, estudioso do idioma e excelente lexicógrafo, já comentou, em conversa particular, que o novo sistema deixa várias questões importantes por resolver. Suponho que o tempo se encarregará de mostrar o acerto da observação de meu amigo.
As mudanças que estão para efetivar-se nada têm que ver com a língua portuguesa, mas única e exclusivamente com a representação escrita da mesma, o que é algo muito diferente. A língua portuguesa não precisa, nem jamais precisou, ser unificada, pela simples razão que sempre foi uma só, sem embargo das diferenças de pronúncia, de ritmo frasal, de escolha vocabular e de construção da frase, fáceis de observar entre as variedades européia, americana e, já agora, africanas do idioma comum (nada digo da recém-criada República de Timor, no sudeste asiático, porque, segundo me consta, embora seja o português a língua oficial da nova nação, é insignificante o número de timorenses que dele se servem).
Um sistema ortográfico pode mudar repentinamente, por lei ou por decreto, e, por vezes, isto ocorre de forma radical: no final da década de 1920, a Turquia substituiu seu sistema de escrita, baseado no alfabeto árabe, pelo alfabeto latino.

Por uma língua viva
Já as línguas mudam constantemente, mas de modo geralmente imperceptível à maioria dos falantes. Nos anos que se seguiram à chegada e estabelecimento da família real portuguesa à capital da grande colônia americana, a pouco e pouco os nativos do Rio de Janeiro, que, até então, haviam pronunciado o s, quer final, quer medial, seguido de consoante, como o resto do Brasil, ou seja, como uma consoante linguodental surda ou sonora, dependendo do ambiente fonético em que se encontrasse, começaram a imitar a fala da Corte e, com isto, a pronunciar o s à lisboeta, ou seja, como uma consoante palatal surda ou sonora, quer em posição final, quer em posição medial, seguida de consoante.

E é por isso que, até hoje, os cariocas chiam onde os mineiros, os capixabas, os paulistas, os nordestinos, os paraenses e os gaúchos sibilam. Mas esta mudança não se fez por decreto real, visto que rei algum teria o poder de promovê-la. Fez-se espontaneamente e, ao que é provável, despercebida à imensa maioria dos falantes. Pois é assim que as línguas mudam: lentamente, em silêncio, sem parar.

Artigo de Sérgio Pachá - ALMA DE UM POETA


Sergio Pachá*


Padre Fernando Bastos de Ávila faz um lúcido e lírico balanço de sua trajetória
Eis um livro digno de alinhar-se entre as grandes autobiografias de nossas
letras – que são poucas. Testemunho de uma vida, lúcido e lírico balanço de
uma existência de escol, seu texto se impõe e fascina por mais uma razão.
Primeiro que tudo, pela implacável sinceridade do relato, tanto mais surpreendente
quanto menos compatível com a reputação de cavilosa e chicaneira
que, antes mesmo de Blaise Pascal e suas Provinciais, já aderia ao nome e à
pele da Companhia de Jesus. Longe, bem longe de tudo isso está o jesuíta que
nestas páginas se confessa.


Rompendo com a sovada tradição da literatura de pios encômios à vida
religiosa, que tem muito mais a ver com o proselitismo fantasioso dos caçadores
de recrutas do que com a nua realidade daquilo que um poeta nosso
chamava “a vida apenas, sem mistificação”, Bastos de Ávila narra os altos e
baixos de sua história, sem nada suprimir ou atenuar: a infância feliz; a vocação,
subliminarmente inoculada pela mãe e, discreta, mas inequivocamente,
caucionada pelo mestre de noviços, mentor de uma suposta “eleição” do adolescente
(eleição esta que, na verdade, era um “jogo de cartas marcadas”, dado
que “a hipótese do recuo dava vertigens, como o caminhar para a condenação
eterna, e era afastada como um pensamento quase obsceno”); o doloroso e
estóico assentimento de seu pai; os anos de formação em Nova Friburgo e na
Europa do segundo pós-guerra; o retorno ao Brasil, para o início de uma carreira de professor e conferencista, primeiro na Escola de Sociologia e Política da PUC-RJ, por ele fundada, e, anos mais tarde, no recém-criado Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (Ibrades).


Uma das surpresas que estas páginas reservam a quantos cresceram embalados
pelo mantra da excelência da formação jesuítica será a crítica serena e
severa que lhe move o autor. Graves são as reflexões que faz sobre seus anos
de filosofia, em Nova Friburgo, “numa espécie de campo de concentração
intelectual, no qual não penetravam os agentes provocadores do pensamento
filosófico contemporâneo”. Ainda mais graves, talvez, as que dedica aos eivados
princípios determinantes do modo de relacionamento dos religiosos entre
si: “O individualismo que marcava nossa formação ascética, a prevenção contra
os riscos de qualquer amizade humana – hoje se falaria em riscos de
homossexualismo – [...] reduziam nossa caridade fraterna à observância de
certas convenções e formalismos. [...] Com uma certa malícia, poder-se-ia
aplicar a nós o dito de Péguy: parce qu’ils n’aiment personne, ils croient aimer
Dieu (como não amam ninguém, pensam que amam a Deus).”
Conseqüência direta de tais princípios é o que se lê num par de entradas
do diário do autor. A primeira diz respeito à sua admissão como membro
honorário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: “Vieram muitos
convidados, nenhum da Companhia de Jesus ou, mais exatamente, veio um
[...] designado pelo Cardeal [...] para representá-lo. [...] Depois houve uma
recepção no terraço, tudo pago por Alberto Venancio Filho. A Societas Jesu,
Societas Amoris (Companhia de Jesus, Companhia do Amor) não gastou
nada comigo e não deu a menor importância a ter um membro no IHGB.” A
segunda, mais curta, é ainda mais incisiva: “Curioso: os leigos amam; nós
somos caridosos.” Já agora nada haverá que surpreenda neste comentário:
“Renunciei inocentemente a tudo e creio hoje que a renúncia inocente é uma
contingência da condição humana. Ninguém faria opção alguma, se pudesse
prever a seqüela de sacrifícios inerentes a qualquer opção.”
E que dizer destas palavras verdadeiramente admiráveis, que parecem
ecoar o “Profundamente” de Bandeira e a “Chanson d’Automne” de Verlaine?
“Noite de São João. Ainda ouço os sons de uma remota festinha junina,
onde talvez um amor esteja nascendo furtivamente. No alto do céu vejo um


balãozinho perdido na noite. Eu sou como ele: uma chama interior me fez
subir. Hoje me sinto surpreendido pela noite e pelo frio externo. Diviso,
embaixo, as rasteiras casas, pequeninas, mas onde pode caber um amor. Sintome
solitário na noite, levado pelo vento, pela luz escassa que não ilumina os
passos de ninguém. E minha chama interior vai se extinguindo até se apagar e
eu de leve pousarei no chão, ou, quem sabe, no grande mar amigo.”


A alma deste padre é a alma de um poeta.

Fonte bibliográfica: Artigo publicado em O Globo, caderno Prosa e Verso, 12 de março de 2005.

Pachá domina 5 idiomas, inclusive o latim




BRASIL
Alô, é da Academia?

08/02/2007
JOSIE JERONIMO
Sérgio. Mas sem acento. Afinal, nasceu antes de agosto de 1943, quando a gramática mudou mais uma vez e os ditongos crescentes passaram a carregar o sinal gráfico.


Não há explicação que escape de Sergio Pachá, guardião das regras de português da Academia Brasileira de Letras - ou lexicógrafo-chefe, como manda o padrão culto.

O estudioso é uma espécie de oráculo da língua portuguesa. Durante o plantão no templo moderno, o quinto andar do edifício anexo ao Petit Trianon, responde consultas por telefone e email. Nos intervalos, dedica-se à leitura da edição eletrônica do jornal New York Times.Triiiiiiiiiiiiiim! O lexicógrafo pega o telefone: "Academia Brasileira de Letras, boa tarde". Do outro lado da linha, o grave/agudo de uma voz adolescente pergunta, com sotaque gaúcho: "Oi, gostaria de saber por que o i tem pingo. Meu professor prometeu um dez para quem trouxer a resposta". Pachá, que sempre teve resposta para tudo, fica surpreso. Vasculha dezenas de enciclopédias brasileiras para encontrar a justificativa, e nada. Um dia depois, estante devidamente revirada, descobre a resposta num dicionário de língua inglesa. E se alivia ao explicar, por email: antes das técnicas modernas de impressão, o i recebia um traço para diferenciar o entalhe da letra. Com o tempo, o sinal evoluiu para o pingo.Atrás da mesa de trabalho, o desconhecido intelectual de cabeleira branca e revolta tira dúvidas de brasileiros de todos os estados. Com espírito manso e voz calma e pausada, fala em nome dos imortais, mas avisa que a ABL não é dona do idioma:- A Academia é vista como o árbitro da correção da linguagem. Mas isso não quer dizer que tenha força legal para fazer qualquer imposição.Um democrata da língua
Os consulentes não pensam assim. Telefonam e escrevem com a força dos inquisidores: "Solicito à ABL que tome uma posição sobre o uso da palavra técnico, muito comum no ambiente em que trabalho", escreveu uma moça que não gostava de ser chamada pela referência masculina. Quem liga costuma exigir regras duras e mudanças para o que considera inadequado.


Pachá conta que os advogados são assíduos. Leais ao juridiquês, ligam para tentar incorporar ao idioma expressões nascidas dos autos de algum processo. Não critica a classe. É um democrata da língua. Rejeita purismos e conta que até mesmo os gregos, povo tradicionalmente marítimo, recorreram ao empréstimo lingüístico para denominar o mar.
A palavra talassa não existia no idioma. Por isso, o lexicógrafo-chefe trata os dicionários como um guia limitado da riqueza idiomática.- A palavra não passa a existir a partir do momento que é registrada no dicionário. Vai para lá depois de existir - explica.Assim como não condena a comunicação truncada dos advogados, assume o papel de defensor do português horizontalizado dos jornalistas. Certa vez, recebeu um email revoltado de um consulente que despejava toda a fúria gramatical contra os profissionais de imprensa. Na mensagem, indagava o surrupio do pretérito perfeito das manchetes jornalísticas. Achava um afronte a arrogância dos comunicadores em sincronizar o tempo do mundo com o das rotativas. "Morre no Rio de Janeiro o Grande João da Silva. Morre? Ele já morreu, então já aconteceu. Pretérito perfeito", bradou o anônimo fiscal da língua.O crítico mereceu três páginas de resposta.

Além da explicação teórica e dezenas de referências bibliográficas, ganhou de presente versos de três poetas. Todos citados de cabeça, como o trecho de Os Lusíadas em que Luís de Camões deixa o passado de lado.Cabeças pelo campo vão saltandoBraços, pernas, sem dono e sem sentido,E de outros as entranhas palpitando,Pálida a cor, o gesto amortecido.Já perde o campo o exército nefando,Correm rios de sangue desparzido,Com que também do campo a cor se perde,Tornado carmesi de branco e verde (Lus.,III, 52)- Eu conheço bem Camões - diz Pachá, esfregando os olhos para disfarçar a timidez pelo flagrante abuso da erudição. - A próxima vez em que ele criticar jornalista, vai pensar duas vezes. Pode até criticar, mas não por essa razão.Imortais com prazo de validade

Pachá domina 5 idiomas, inclusive o latim
Mas há também, entre os consulentes, quem se desespere com a limitação do português e sugira novas palavras. A esses, o filólogo simula, com brejeirice, o que aconteceria se todas as mudanças fossem acatadas:- Emengarda da Silva é uma brilhante quimieira industrial que estudou engenharia quimiária no Japão e também leciona química em uma escola profissionalizante.

Doutor pela Universidade da Califórnia e dono de uma erudição incomum, Pachá domina cinco idiomas. Traduziu os Manifestos do Surrealismo, de André Breton, e agora trabalha nas intervenções de Ruy Barbosa na Segunda Conferência da Paz, de 1907, em Haia, que serão publicadas este ano.
Lê e escreve em latim, conhece por dentro a língua e o contexto dos textos clássicos, mas reverencia todos os imortais da Academia da pequena sala que divide com outros três funcionários. Em sua mesa, mantém a foto da gata Isolda - que morreu há poucos meses, depois de viver 19 anos com o filólogo - e pequenos vasos de cerâmica marajoara. Trabalha na ABL há cinco anos, desde que foi convidado pelo imortal Evanildo Bechara.Suas respostas são verdadeiros tratados de gramática.

Mesmo assim, com a paz dos simples, diz que dar a resposta mais completa é seu trabalho. Preserva-se de criticar a influência da indústria literária na indicação dos que vestirão os fardões, mas traça a diferença entre acadêmico e imortal.- Não sei se todos os acadêmicos serão imortais daqui a 20 ou 30 anos. Mas tenho certeza que todos os imortais atuais são acadêmicos - sentencia.
+ Pergunte ao Pachá:
scpacha@academia.org.br

Fonte: http://www.palmalouca.com/reportagem/reportagem.jsp?id_reportagem=167